Imagem: Carlos Lowenstein Não é verdade que a música que se criava há duas, três ou quatro décadas era melhor. Talvez fosse mais fácil aceit...

Imagem: Carlos Lowenstein

Não é verdade que a música que se criava há duas, três ou quatro décadas era melhor. Talvez fosse mais fácil aceitar as preferências das rádios e de outros canais de difusão que colocavam bandas no centro dos holofotes em detrimento de outras. E talvez, caras associadas à divulgação de música levavam melómanos a consumi-la por confiarem nas sugestões desses especialistas. A máquina era pensada de outra forma e nem sempre chegava aos ouvintes com o imediatismo de agora. Hoje, sabemos que a partilha online é imediata, mas também mais efémera. Todos são produtores, promotores e criadores, as funções mesclam-se na era da cultura democratizável. 

Talvez seja também mais difícil ouvir algo que nos faça vibrar por carecer de peculiaridade. Mas a sede de outras sonoridades é saciada quando discos conseguem modelar as expressões faciais. Os americanos Lifeguard são um desses casos. A banda que podia fazer parte do clã Stranger Things, inspira-se no garage, pós-punk, indie rock desconstruído dos anos 90, enfatizado pelos Sonic Youth, para criar música que suscita interesse. De um lado Kai Slater canta melodias e toca a guitarra retro conturbada, do outro Asher Case marca o ritmo com palavras e baixo e ao centro Isaac Lowenstein marca o tempo com batidas intensas. A energia vai alimentando a evolução de uma banda que ainda é recente, mas com todos os nutrientes necessários para lançar discos que necessitamos de juntar à nossa playlist.

O baixo propulsivo de Case e a bateria intensa de Lowenstein alimenta a euforia colectiva, própria de jovens idealistas que vêem nos palcos, estúdios e pessoas à sua volta a sua libertação. Como alguém disse, é como se Sonic Youth e Drive in dessem à luz um filho. Ou uma filha. E Alarm marca esse momento. Esta estranha relação intergeracional que liga gerações diferentes, as mais novas, que muito ou pouco sabem sobre a vida, depende da idade com que se depara com tragédias anti-natura, aos mais velhos, com experiência sobrelotada com memórias, só é possível pela magia que a música tem. Uma coisa é reveladora, as influências são essenciais para o género de música que os Lifeguard fazem. O trio não pretende ser um arquivo musical que traz à superfície a imitação de guitarras underground de décadas passadas, pelo contrário, é o produto de uma comunidade que traz uma nova roupagem alicerçada ao revivalismo do rock de 90.

Dive

No álbum de estreia Dive, os Lifeguard apresentam linhas de baixo que poderiam animar até temas pós-punk mais sombrios, uma bateria apaixonada que aumenta a tensão até ao ponto de ebulição e guitarras ferozes tão saturadas de distorção que se espalham pelas salas. Unfold é sem dúvida o tema que mais chama a atenção pela brincadeira rítmica que o trio cria e Fishnet volta a Sonic Youth como referência maior, mesmo que não seja consciente. As referências de Lifeguard vão de Tortoise, Fugazi a Unwound - bandas que nasceram sem nenhum membro de Lifeguard existir ainda. Contudo, o adn poderia justificar a tendência para o tipo de sonoridade, uma vez que o baixista e vocalista Asher Case é filho de Brian Case (Facs) que comentou com Munaf Rayani de Explosions in the Sky que a incursão do seu filho na música foi por vontade própria e influência de amigos. Verdade seja dita, Dive transparece a exploração de três miúdos com curiosidade para desbravar novos caminhos e cuja pegada é mais transformadora e ousada ao rock do género feito em décadas passadas.

Crowd Can Talk


O mais recente trabalho resulta de um esforço colectivo. 17-18 Lovesong fica no ouvido por tempo indeterminado, aparentemente inspirado por relações desfeitas e por uma profunda autorreflexão. O tema esboça um misto de sentimentos sincronizados por um pós-punk que pede um passeio de bicicleta acelerado. A compilação de dois EPs, Crowd Can Talk, lançado ano passado via Matador, originalmente editado pela Born Yesterday, e Dressed in Trenches, uma colecção de cinco temas, lançado a 7 de Julho, gravado no estúdio Electrical em Chicago, pelo engenheiro de som Mike Lust, é a nossa recomendação para escuta e salvação para um metro apinhado de gente. Lifeguard mostra que a cena juvenil de Chicago encontra-se de boa saúde.

Texto: Priscilla Fontoura

Género: alternativo, experimental, avant-garde, rock Autores:  Ultra Zook Disco:  Auvergnication Lançamento:  5 de Maio, 2023 Editoras:  Du...

Género: alternativo, experimental, avant-garde, rock
Autores: Ultra Zook
Disco: Auvergnication
Lançamento: 5 de Maio, 2023
Editoras: Dur et Doux, Coolax, Araki Records, L'Etourneur, Not a Pub e Gnougn, Ignominie


Espera-se, de alguns "mensageiros" que nos enviam emails, novidades interessantes. Os Dur et Doux fazem parte da faixa que não desilude sempre que nos chega uma notícia da editora de Lyon. Falam do novo disco de Ultra Zook, uma banda francesa formada em 2011 que agora lança Auvergnication, trabalho que se enquadra na época estival e tem como pano de fundo a Auvérnia, região montanhosa rica em florestação, com estâncias termais e vulcões adormecidos. Clermond-Ferrand, lugar onde decorre um dos festivais de cinema mais importantes da Europa, é a principal cidade da região. O quinto disco (3 EPs) e segundo álbum, que contém 9 temas, abunda em talento e criatividade, tanto conceptual quanto musicalmente. François Arbon (saxofone e trombone), Flo Borojevic (percussão), Ilya Faraut (voz) são os músicos convidados deste disco que contribuíram com linhas e texturas sonoras. Imagino a diversão em torno da criação de Auvergnication. 

Ultra Zook

Não se tem como intuito detalhar cada faixa de Auvergnication. Essa tarefa cabe a quem o quiser ouvir. No entanto, alguns temas merecem ser destacados, como é o caso de "Rêve avec les Red Hots", pelo imaginário revelado por um dos integrantes da banda, que há 10 anos sonhou que conheceu [os outrora até interessantes, mas agora chatos], Red Hot Chili Peppers. Ressaltam "J'ai l'impression qu'c'est plus ça", que conta a história de um desentendimento amoroso, "L'aspi", que segue os pensamentos de uma pessoa que está a aspirar a casa e "Cet Enfant-là", que fala sobre uma separação e o fato de que nunca nascerá um filho dessa união. "Complètement Plètement", cujo texto foi escrito pelo irmão do último membro do grupo Jérémie Bardiaux, joga com palavras e ritmos. O meu preferido? "Salut!". É festivo e causa gargalhadas. Auvergnication é um bom disco para acompanhar as férias junto de amigos melómanos que tanto falam sobre como conseguiram enganar o ChatGpt sentados numa tampa de sanita, como fritam batatas fritas cobertas com aioli às 5 da manhã depois de uma maratona no youtube a ver vídeos de luta do Rambo turco. Este disco é divertido. Se conseguir roubar um sorriso de alguém que esteja a passar por uma depressão profunda, deixará certamente o trio contente. Bandas como Za!, Red Wings Mosquito Stings e Zach Hill remetem, aqui e ali, para o som dos franceses. 
 
Assinala-se o gesto bonito das editoras que se uniram para distribuírem o disco: Dur et Doux, Coolax, Araki Records, L'Etourneur, Not a Pub e Gnougn e a Ignominie para a versão K7. A capa colorida, autoria de Matt Konture, deixará o arquivo musical ainda mais interessante e, segundo um membro de Ultra Zook, já o testou no rádio do carro. Parece que a experiência correu bem, excepto nas alturas em que não reparou nas lombadas da estrada.

Os Ultra Zook têm dado concertos. E que tal visitarem Portugal?

Ultra ZookBenjamin Bardiaux: teclado e vocais; Rémi Faraut: bateria e vocais; Manu Siachoua: baixo, guitarra e vocais

Texto: Priscilla Fontoura

  Montagem: Priscilla Fontoura

 

Montagem: Priscilla Fontoura

Wagner als "gefährliches Individuum“, Steckbrief von 1853 O ruído contraria a harmonia tal como a violência se opõe à paz. Diz Jacq...

Wagner als "gefährliches Individuum“, Steckbrief von 1853

O ruído contraria a harmonia tal como a violência se opõe à paz. Diz Jacques Attali que o ruído é, em si mesmo, violência: molesta. Fazer ruído é romper a comunicação, desconectar, matar. Por outra parte, a música é o simulacro de canalização do ruído, imagem de sacrifício, sublimação, exacerbação do imaginário, ao mesmo tempo que criadora de ordem social e de integração política1.

Todo o poder ou ideologia precisa de um músico para fazer esquecer a violência geral; de fazer acreditar na harmonia do mundo pela legitimação do poder; e de fazer calar a dissidência produzindo uma música ensurdecedora e eclética. O poder utiliza a música como bode expiatório ou rito sacrificial quando nos quer esquecidos; como encenação ilusória sempre que necessite da nossa credulidade; e como repetição em série, uniformizadora, quando precise de nos emudecer.

A música sempre foi um instrumento nas mãos do poder. Carlos Magno impôs o canto gregoriano para controlar o pensamento e criar a unidade política e cultural em todo o seu império. A ópera, a música sinfónica, o jazz, o pop ou o rock reproduzem a estrutura das sociedades nas quais se manifestaram e também mudam com elas. Mas o músico também pode ser perigoso quando tem a possibilidade de subverter a normalidade e nos faz ouvir aquilo que acabará por se tornar visível. Essa era a advertência de Platão, pois “nunca se abalam os géneros musicais sem abalar as mais altas leis da cidade”2. E quando o poder desleixa a proteção e financiamento dos seus músicos, eclodem os sons dos diferentes poderes em conflito e até os ruídos de revolução.

Em 1830, quando tinha apenas dezassete anos, Richard Wagner ficou revoltado pela invasão russa da Polónia, e aí começou o seu in amado posicionamento revolucionário. Em 1848, ano do Manifesto comunista, Wagner frequenta o anarquista Bakunin e, pouco antes da revolução de maio de 1849, no dia 8 de abril publica um artigo radical, no Volksbläter, pedindo a destruição da ordem existente; mas a revolução foi duramente reprimida e, milagrosamente, consegue fugir ao fuzilamento exilando-se na Suíça. Wagner nunca incluiu ‘Die Revolution’ na edição dos artigos e poemas mas foi o germe do libreto da Tetralogia de O Anel dos Nibelungos.

A viúva de Wagner, Cósima, e o seu lho Siegfried, dirigiram o Festival de Bayreuth até 1930, passando a direção, nesse ano, para Winifred, viúva de Sigfried, que era muito amiga de Adolf Hitler, começando aí a manipulação da mensagem wagneriana. O gosto musical de Hitler não ia além de operetas e de insípidas musiquetas, mas o aparato de propaganda nazi soube capitalizar os convites do festival. No final da guerra, Winifred foi condenada à prisão, com pena suspensa, e afastada da direção.

O triste paradoxo é que após mais uma invasão russa, e um século da perversa manipulação nazi, ainda haja quem acredite que Wagner inspirou as atrocidades de Hitler, ou que um grupo paramilitar invoque o seu nome para semear a morte na Ucrânia. Nenhum deles percebeu alguma coisa do significado profundo das óperas wagnerianas, e como a invocação errada os leva a uma desgraça imprevista e funesta, como aconteceu a Hitler. Talvez esta reflexão de Edward Said nos ajude a entender: “Em certo sentido, todas as artes são silenciosas... a música, que depende do seu som, e é som, é a mais silenciosa, a mais inacessível ao significado mimético que, por exemplo, podemos obter de um poema, uma novela ou um filme.”3 Interiorizar esse silêncio é um ritual reconciliador com a ordem social, mas o silêncio que aqueles iluminados impõem à humanidade tem mais a ver com a paz dos cemitérios, em sentido literal. Quando a música substitui o ruído natural de fundo, transforma-se numa violenta imposição do silêncio pela música, num ruído para fazer calar a massa ou reorganizá-la ideologicamente por meio da repetição. Mas a repetição só transmite a insignificância, a incomunicação e utiliza o arcaico sistema tonal para não surpreender o público e assim conseguir que a massa consuma as musiquetas do ruído de uniformização universal. Há uma outra música, radicalmente oposta, minoritária e sem mercado, que sub- verte os códigos culturais dominantes, e que pode fazer-nos ouvir aquilo que acabará por tornar-se visível. Attali conclui que “a música é como a multidão, tanto ameaçadora como uma fonte necessária de legitimidade, um risco que todo o poder deve correr ao tentar canalizá-la”4.

O imperador romano Marco Aurélio, no livro segundo das suas Meditações, afirma: “Eu já vi a beleza do bem e o horror do mal, e percebi que a natureza de quem pratica esse mal é semelhante à minha”5. A música é uma negociação contínua das partes em conflito. A composição é um questionamento perpétuo da estabilidade, ou seja, das diferenças. Lederach dá por certo que “a criatividade vai além do que existe, rumo a algo novo e inesperado”6.

Autor do texto: Rudesindo Soutelo (Compositor e Mestre em Educação Artística)


1 Attali, J.: Ruídos. Ensaio sobre la economia política de la música. Valencia: Ruedo Ibérico, 1977, p. 53.
2 Platão: A República. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008, p. 169 [424 c].3
3 Said, E.: Música al limite. Barcelona: Random House Mondadori, 2011, p. 348.
4 Attali, J.: Op. cit. p. 29.
5 Aurélio, M.: Meditações. Lisboa: Cultura editora, 2019, p. 19.
6 Lederach, J.P.: The Moral Imagination in European Judaism. Volume 40, Issue 2 (2007) (berghahnjournals.com). Aces- so em: 11 abr. 2023.

Género:   jazz, free, improvisação, instrumental, noise Autores: Sensor  Disco: Amplifying Frequencies Lançamento: 24 de Fevereiro, 2023 ©...

Género: jazz, free, improvisação, instrumental, noise
Autores: Sensor 
Disco: Amplifying Frequencies
Lançamento: 24 de Fevereiro, 2023

© Micaela Amaral e André Coelho

Chegam-nos novidades do mais recente lançamento de Sensor: o "colectivo mutante de improvisação portuense". Sensor volta à carga com um novo trabalho que se destaca pela exploração de intersecções sonoras entre guitarra (Rafael Fernandes), saxofone (Sigmund Snopek IV), bateria (Raúl Silva) e electrónica (André Coelho), entre o industrial e o jazz, o rock, e pela dicotomia vida e morte. Este trabalho comunica com almas viajantes que gostam de vaguear pelos centros urbanos durante a noite. O registo experimental e jazzístico volta-se para a improvisação como ferramenta motivadora que potencializa a criação de narrativas visuais.

A auto-análise em torno de "Amplifying Frequencies" refere: “Vejo à minha volta todos os meus antepassados chalados, dançando à roda da cama, consolando-me, incitando-me, azorragando-me com as suas línguas de serpente, sorrindo e troçando de mim com as suas esquivas caveiras. Mais nitidamente do que tudo o mais vejo a minha própria caveira risonha, vejo o esqueleto a dançar ao vento, serpentes saindo da língua putrefacta e as empoladas páginas de êxtase viscosas de excrementos. E junto-me ao meu lodo, ao meu excremento, à minha loucura, ao meu êxtase, ao grande circuito que flui através das cavernas subterrâneas da carne. Todo este vómito não solicitado, não desejado, bêbado, fluirá interminavelmente através da morte dos que chegaram ao vaso inexaurível que contém a história da espécie”.  - Sensor

"Amplifying Frequencies" está disponível em CD-R profissionalmente duplicado, acompanhado de um fanzine de 16 páginas com capas e bolsas impressas a linogravura. Edição em envelope kraft e limitada a 60 cópias. Grafismo por Micaela Amaral e André Coelho.
Edição digital disponível em https://khthonios.bandcamp.com/

Para encomendar uma cópia, poderão enviar um email para bunkerfanatic@gmail.com ou comprar directamente através da página de bandcamp da KHTHON


Gravado e misturado por João Guimarães no Quarto Escuro e Microclima // Porto
Grafismo por Micaela Amaral e André Coelho

A identidade de um lugar é transmitida pelo toque singular dos guardiães da tradição oral. De há uns tempos para cá, assiste-se ao ressurgim...


A identidade de um lugar é transmitida pelo toque singular dos guardiães da tradição oral. De há uns tempos para cá, assiste-se ao ressurgimento do folclore brasileiro na cultura brasileira pós-moderna. Os Papangu, formados em 2012, são estafetas dessa missão. Passaram sete anos até "Holoceno" ser lançado. O primeiro disco da banda inspira-se na escatologia ecológica e no movimento modernista nordestino do Brasil, região árida historicamente marcada pela desigualdade social e pela violência. O disco cantado na língua nativa da banda, o português, narra a história de um cangaceiro - um bandido do sertão do Brasil - que, após ter uma visão do seu destino, tenta mudá-lo por meio de um ritual de sacrifício. A tentativa não muda o curso do destino, mas acentua-o para uma reacção em cadeia, impelindo o protagonista a fazer o pacto de Fausto para impedir o próximo desastre ambiental.

A preservação e disseminação do folclore brasileiro por meio da ficção e da música de artistas brasileiros têm se revelado, nos últimos tempos, uma consciência que se afirma por manter a história da região viva. Apesar das influências directas de prog, stoner rock, post rock, sludge, zeuhl e os ritmos do Nordeste do Brasil, a soar a Mastodon e King Crimson de meados dos anos 70, dir-se-ia que "Holoceno" poderia ser a alegoria de uma nave espacial que abduziu os Oranssi Pazuzu para a realidade brasileira. O disco é permeado por riffs lentos aumentados por estruturas musicais incomuns e ritmos sincopados - cortesia de Torstein Lofthus, lenda de Elephant9 e SHINING - com participações de Uaná Barreto no teclado, Luis Souto Maior no sintetizador monofónico analógico e Prophet-6, e o saxofonista Benjamin Mekki Widerøe de Seven Impale. O tema bónus inclui uma remistura de Bacia das Almas de Toby Driver (Kayo Dot e Maudlin of the Well), exclusivo para compras feitas no Bandcamp. A compra de Holoceno no formato digital via Bandcamp ajudará a produção e lançamento do próximo disco dos Pagangu.

Como correu a digressão e por que caminhos andaram?
Papangu: Correu muitíssimo bem e superou todas as nossas expectativas. Tocámos no sudeste do Brasil, onde se fixa a maior parte do público brasileiro de metal e rock vive (graças às áreas metropolitanas do Rio de Janeiro e São Paulo). A digressão incluiu quatro datas na capital paulista, uma na capital carioca, e outras no interior de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Nunca havíamos tocado fora do nosso estado natal, mas a repercussão de Holoceno e os convites feitos pelo duo de grindcore experimental TEST e pelo festival Kool Metal Fest nos tiraram do conforto de casa. Foi, de fato, nossa primeira digressão de verdade, e gostaríamos muito de fazer isso com mais frequência – quiçá na Europa em 2024, se algum booking agent ou organizador de shows europeu nos convidar. Vendemos todos os CDs e fitas cassete, além de quase todo o estoque de camisetas e discos de vinil. Não acreditávamos que isso seria possível.

As revoluções que ocorreram aqui no tempo do Brasil colonial. As criaturas fantásticas do imaginário popular. Tudo isso fez parte do nosso crescimento e nós temos orgulho disso.


Por que levaram tanto tempo para lançar o disco?
Papangu: Quando iniciamos a banda, éramos basicamente crianças. Hector (guitarra e vocal) devia ter por volta dos 17 anos, que no Brasil ainda é tido por adolescente. Nós éramos estudantes universitários e não tínhamos nem dinheiro e nem estrutura alguma para gravar nosso som. Lentamente nós conseguimos algum dinheiro através dos nossos empregos com o passar do tempo, bem como montando, aos poucos, uma estrutura apta para polir nossas composições de maneira mais profissional, através da aquisição de mais instrumentos, mais equipamentos, interfaces de som que permitiam a gravação de demos… Esse processo de amadurecimento como músicos e como pessoas fez com que o resultado demorasse a ser concretizado. Mas as sementes estavam plantadas desde cedo. A música “Terra Arrasada”, por exemplo, foi a primeira composição da banda.

Têm algum vínculo afectivo com o nordeste ou a região serviu apenas de inspiração para produzir Holoceno?
Papangu: Todos nós da banda somos nascidos e/ou criados no nordeste do Brasil. O vínculo que temos com as histórias, tradições e falas presentes no nosso disco está no nosso sangue. Nós crescemos ouvindo histórias dos cangaceiros e do bando de Lampião em suas viagens pelo sertão nordestino. As revoluções que ocorreram aqui no tempo do Brasil colonial. As criaturas fantásticas do imaginário popular. Tudo isso fez parte do nosso crescimento e nós temos orgulho disso.


Fizeram muita pesquisa com recurso a livros de inspiração ao movimento modernista nordestino?
Papangu: Algumas letras e conceitos são directamente inspirados por obras como “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, além de “Morte e Vida Severina” de João Cabral de Melo Neto, além de obras diversas de Ariano Suassuna e Augusto dos Anjos.

Quem foi o responsável pelas líricas e como se dá o processo de composição?
Papangu: Depende da canção. Existem canções que possuem a letra integralmente construída por um ou outro membro. As letras de “Água Branca”, por exemplo, foram escritas por Marco (baixo e voz). Já “Lobisomem” foi escrita por Hector. Terra Arrasada, contudo, é um esforço colaborativo. Não há uma regra definida, portanto, e estamos sempre abertos a sugestões e colaborações dos membros da banda.

São histórias que eram contadas por nossos pais e mães, avôs e avós enquanto crescíamos. A cultura popular do nordeste brasileiro é riquíssima e merece ser cada vez mais estudada, apreciada e protegida. 


"Água Branca" encontra-se incluída tanto no disco como no EP. Por que optaram por esta escolha?
Papangu: O principal motivo de lançamento do EP foi apresentar ao nosso público uma versão alternativa da faixa “Água Branca” que antes só podia ser ouvida em uma compilação chamada “Milim Kashot Vol. 4”, de curadoria do blog Machine Music e realizada como forma de campanha beneficente em prol de um colega da cena da música extrema. A versão alternativa da compilação possui vocais diferentes, backing vocals diferentes, bateria diferente, um solo diferente (de guitarra e não de sintetizador, como em Holoceno) e uma mixagem diferente. Achámos que seria legal mostrar a versão alternativa também para os nossos fãs. Além disso, incluímos uma faixa experimental chamada “São Lourenço” para apimentar o lançamento.

O folclore brasileiro nordestino, os contos e mitos, são também muito estimulantes. Consideram que o vosso mundo entra também nesse imaginário? E quais são os contos que mais gostam?
Papangu: São a maior inspiração para os conceitos e letras que fazemos, sem dúvida. São histórias que eram contadas por nossos pais e mães, avôs e avós enquanto crescíamos. A cultura popular do nordeste brasileiro é riquíssima e merece ser cada vez mais estudada, apreciada e protegida. Acreditamos que as histórias mais fascinantes são as que envolvem criaturas místicas como as carrancas e os espíritos que habitam o grande Rio São Francisco, bestas vorazes como o lobisomem, a serpente feita de fumaça chamada de Boitatá. Além disso, as histórias reais e fantasiosas dos cangaceiros e do bando de Lampião estão entre as mais fascinantes.

O contacto inicial foi o de admirador. Marco (baixo e voz) é fã dos elephant9, banda de Torstein, e dos Kayo Dot, grupo de Toby, desde a pré-adolescência, e eventualmente fez amizade com os dois músicos ao vê-los em concertos. Como surgiu a necessidade de colaborar esteticamente em condições distintas – a pandemia nos forçou a gravar baterias fora do Brasil; precisávamos remixar “Bacia das Almas” –, contactámos os músicos e sugerimos a colaboração. 


Como foi o contacto com o Torstein Lofthus e Toby Driver?
Papangu: O contacto inicial foi o de admirador. Marco (baixo e voz) é fã dos elephant9, banda de Torstein, e dos Kayo Dot, grupo de Toby, desde a pré-adolescência, e eventualmente fez amizade com os dois músicos ao vê-los em concertos. Como surgiu a necessidade de colaborar esteticamente em condições distintas – a pandemia nos forçou a gravar baterias fora do Brasil; precisávamos remixar “Bacia das Almas” –, contactámos os músicos e sugerimos a colaboração. O resultado foi excelente e pretendemos continuar a trabalhar juntos em algum momento.


Têm uma preocupação moral com a sustentabilidade e o estado do nosso planeta. Lançaram a versão em vinil de "Holoceno" cuja finalização se deu com material amigo do ambiente e livre de toxicidade, à base de cera aquecida transferida para o papel. Como tem sido em termos de encomendas, as pessoas têm denotado mais consciência ecológica e ambiental, ou continuam a preferir a outra versão?
Papangu: Temos uma grande preocupação com o cataclisma ambiental que vem se assomando sobre o nosso planeta e isso está presente no conceito de “Holoceno”. É interessante e importante que uma grande quantidade de produtos, inclusive de bandas, possa ser confeccionada com materiais mais sustentáveis. Mas não temos ilusão de que isso vai salvar o mundo ou adiar o apocalipse. Apenas mudanças no cenário político e económico terão esse condão. Há uma falácia, criada pelas grandes corporações e efetivamente culpadas pela devastação, de que a culpa do cenário que vivemos é do pequeno cidadão que toma um banho longo ou que deixa de consumir produtos “eco”, quando na verdade o meio de produção capitalista e exploratório em que vivemos é um tiro certeiro em direção ao fim do mundo como conhecemos. O lobby feito pelos setores agropecuário e petrolífero para subsidiar o gado emissor de metano e os combustíveis fósseis ultra poluentes é um exemplo desse descaminho. Então é importante sim que produtos, e nossos produtos, sejam confeccionados em embalagens e materiais sustentáveis, mas nós precisamos de muito mais do que isso para impedir as mudanças climáticas e a devastação ecológica global.

...é difícil enxergar esse tipo de mudança dentro de um cenário de capitalismo predatório como o que nós vivemos. Mas isso não significa que nós vamos assumir uma postura pessimista e entreguista. Continuaremos lutando, pois nossas vidas e as das futuras gerações estão em jogo.


Agora que a Amazónia está entregue a um presidente que defende a sua protecção ambiental, encontram-se mais descansados ou desconfiam das suas promessas?
Papangu: Nós participámos ativamente da campanha para eleger Lula como o novo presidente do Brasil e ficámos imensamente felizes com sua vitória. Foi um passo determinante para remover o criminoso fascista chamado Jair Bolsonaro da presidência do nosso país. Contudo, precisamos continuar com os olhos bem abertos para tudo que precisa ser feito no que diz respeito à proteção do meio ambiente nas terras brasileiras. É esperado que o governo Lula retome a proteção merecida e esperada por nós brasileiros e pela comunidade internacional e nós vamos torcer para que isso ocorra. Ainda é cedo para tomar qualquer tipo de julgamento, temos apenas 3 meses incompletos de governo sob dificuldades de negociação com o Congresso, mas estamos desde já acompanhando os passos necessários para uma reversão no cenário em sentido positivo.

Quanto à reversão do cenário, é válido retomar o que afirmamos no questionamento anterior: apenas uma mudança drástica nos paradigmas políticos, sociais e econámicos será capaz de estancar ou ao menos atrasar o cenário de devastação ambiental em que vivemos. Pesquisas recentes demonstram que para manter o aquecimento global em apenas 1,5 grau Celsius exigiria que as nações reduzissem coletivamente suas emissões em cerca de 43% até 2030, além de que parassem de emitir dióxido de carbono para na atmosfera no início dos anos 2050. Infelizmente, é difícil enxergar esse tipo de mudança dentro de um cenário de capitalismo predatório como o que nós vivemos. Mas isso não significa que nós vamos assumir uma postura pessimista e entreguista. Continuaremos lutando, pois nossas vidas e as das futuras gerações estão em jogo.

Além da gravação do próximo disco, quais são os próximos objectivos?
Além de novas composições, é claro, pretendemos continuar levando a nossa música para lugares que ainda não tocamos dentro do Brasil e também ao redor do mundo. Seria fantástico conhecer e tocar em Portugal, inclusive!

Holoceno foi misturado por Jorgen Smädal Larsen, do estúdio Paradiso, em Oslo, masterizado por James Plotkin e produzido por Marco Mayer e a produção executiva ao cargo dos Papangu. A arte final esteve ao comando de Ars Moriendee, o logo por Salomão Montenegro e fotografia de Malu de Castro.

Texto e entrevista: Priscilla Fontoura
Capa: Ars Moriendee
Logo: Salomão Montenegro
Fotografia: Malu de Castro

Montagem: Priscilla Fontoura

Montagem: Priscilla Fontoura

Género:  rock progressivo, avant-garde, rock japonês, noise Autores:  Poil Ueda Disco:  Junko Ueda Lançamento:  3 de Março, 2023 Editora:  D...

Género: rock progressivo, avant-garde, rock japonês, noise
Autores: Poil Ueda
Disco: Junko Ueda
Lançamento: 3 de Março, 2023
Editora: Dur et Doux

Lilas Mala

Ultimamente as criações do Oriente têm vindo ao nosso encontro por mero acaso, ou será uma mensagem subliminar? No início do mês, os PoiL, com Junko Ueda, lançaram o disco homónimo. Ao longo do princípio do ano segui com atenção as publicações da banda nas redes sociais que se propunha a tocar na Europa. Eu própria partilhei a mensagem, mas infelizmente parece que nenhuma promotora interessou-se a dar-nos a ouvir numa sala de concertos o disco fabuloso.

Conceptualmente, PoiL Ueda retrata o encontro inesperado entre Junko Ueda, uma figura eminente da narrativa épica medieval japonesa, cuja voz quente e profunda convoca energias terrestres, e PoiL, o monstro que carrega uma loucura orgânica entoado num registo cósmico, progressivo e brutal.

O tema introdutório Kujô-Shakujô entoa um canto budista shômyô praticado pelos monges para afastar os maus espíritos. Convém, se se quiser andar descansado sem as mãos próximas da espada, mas não é o que a segunda parte prediz. O disco segue a estrutura das narrativas épicas japoneses que se centram nas lutas entre clãs que recorriam às artes marciais, à filosofia de respeito ao próximo e à hierarquia. A segunda parte mergulha numa batalha naval pelo controlo do poder, protagonizada pelos Heike e os Genji, dois clãs de guerreiros samurais, cujas gestas foram imortalizadas numa das epopeias mais emblemáticas da literatura japonesa, o Heike Monogatari, que remonta ao século XIII.


PoiL resulta de uma colaboração entre Junk Ueda, a vocalista e tocadora de biwa, e PoiL, a banda de rock francesa. A composição é baseada no canto épico tradicional shômyô tocado ao som do biwa e no canto budista Através da fusão de uma antiga música tradicional japonesa com uma formação musical europeia hipermoderna, este projeto oferece a oportunidade de descobrir um universo musical único. Uma performance inovadora onde o rock experimental desenfreado de PoiL se mistura com a voz suave e sinuosa, a narrativa convincente e o notável carisma de Junko Ueda.

Um disco extraordinário e recomenda-se PoiL em concerto para quem estiver num dos países contemplados pela digressão 2023.

Digressão 2023
01.03 Marché Gare (LYON - FR)
02.03 Zelig (LAUSANNE - CH)
03.02 Kuba (JENA - DE)
04.03 Festival des Arcs en hiver (BADEN - CH)
09.03 Neubad (LUZERN - CH)
10.03 Vera (GRONINGEN - NL)
11.03 Peel Slowly and see (LEIDEN - NL)
12.03 Le Lac (BRUSSELS - BE)
12.04 Momentum (ODENSE - DK)
13.04 Victoria (MALMÖ - SE)
14.04 Turkis (AARHUS - DK)
15.04 Rilksscenen (OSLO - NO)
17.04 Rahuset (COPENHAGEN - DK)
18.04 MS Stubnitz (HAMBURG - DE)
19.04 Tor 9 (BREMEN - DE)
20.04 Roadburn festival (TILBURG - NL)
29.04 April Jazz (ESPOO - FI)
18.05 FIMAV (VICTORIAVILLE - CA)
24.05 Zez (ZAGREB - HR)
25.05 Druga Godba (LJUBLJANA - SI) - TBA
26.05 Limmitationnes (DEUTSCH MINOHOF - AT)
27.05 Orpheum Extra (GRAZ - AT)
29.05 Music Meeting (NIJMEGEN - NL)
10.06 Clandestino festival (GOTHENBURG - SE) - TBC
17.06 L'An Vert (LIEGES - BE)
18.06 Houtfestival (HAARLEM - NL)
28.06 Festival Med (LOULE - PT) - TBA
08.07 Rudolfstadt festival (DE) - TBA
16.07 Musicales de l'Aggly (PLANEZE - FR)
25.08 Shambala festival (NORTHAMPTONSHIRE - UK)

PoiL Ueda:
Antoine Arnera I teclado e vocais, Boris Cassone I guitarra e vocais, Benoit Lecomte I baixo acústico, Guilhem Meier I bateria, vocais, Junko Ueda I satsuma biwa, vocais, Stéphane Piot I gravação na Hacienda, RemyBoy I mistura e masterização, Lilas Mala | artwork, Clément Dupuis | produção executiva, Judith Saurel I Layout, Adrien Arnera I admistração

A narrativa do filme Women Talking de Sarah Polley (2022) inspira-se nos relatos verídicos ocorridos na comunidade menonita em Manitoba, na...


A narrativa do filme Women Talking de Sarah Polley (2022) inspira-se nos relatos verídicos ocorridos na comunidade menonita em Manitoba, na Bolívia, por influência do romance que leva o mesmo nome (2018), escrito pela canadiana Miriam Towes. São mulheres em sintonia e união a ajudarem outras mulheres que carregam a necessidade urgente de declarar ao mundo os actos dramáticos cometidos contra as suas vidas, as suas gerações e os seus futuros. Há que sublinhar que também existem (na vida real) as que escavam mais a fundo o poço para a queda de outras mulheres, causando dano aos seus futuros sem demonstrar a mínima empatia.

Entre 2005 e 2009, mais de 100 meninas e mulheres foram violadas nas camas das suas casas. As notícias relataram que a mais nova teria 3 anos e a mais idosa 65 anos. Ao depararem-se com o cenário dantesco do sangue que lhes escorria entre as pernas, como as dores que sentiam no corpo pela força cometida durante a prática de violência sexual aquando do sono, continuaram na dúvida por terem sido vítimas forçadas a adormecer com anestesia a viver num cenário de alienação social. Tragicamente, todos aqueles actos horríveis cometidos colectivamente foram provados. Alguns homens da comunidade de Manitoba usavam sprays anestésicos para entorpecer aquele grupo de mulheres e violá-las durante o sono, tais sprays eram utilizados para sedar cavalos e vacas.

Nas ruas de terra de Manitoba, a comunidade feminina é mantida analfabeta e desconectada do mundo. Apenas os homens, com propósitos macabros, sabiam ler. Tudo o que ia contra os preceitos da comunidade era taxado de pecado e de produto perigoso da imaginação feminina. Embora o grupo feminino fosse analfabeto, sabia de cor e salteado passagens das Escrituras servindo de esperança para a libertação daquele aprisionamento sujeito a acontecimentos traumáticos.

Em 2009, alguns dos homens da cidade foram apanhados em flagrante delito pelas meninas dispostas a provar que os seus relatos eram verdadeiros. Diante dos factos, as mulheres maduras decidiram munir-se de coragem ao chamarem a polícia. De oito homens, sete foram condenados.

No filme observa-se o seio da comunidade ultraconservadora menonita, onde se reúnem mulheres para decidirem o seu amanhã. Quem narra a trama é Autje (Kate Hallett), uma das adolescentes de Manitoba filha de Mariche (Jessie Buckley). Para quem nunca ouviu falar nos menonitas, huteristas ou nos amishes, todos descendentes dos anabatistas e com raízes na Reforma radical do século XVI, perder-se-á no tempo retratado no filme e julga que a trama ocorre no tempo passado. Mas o brilhantismo deste filme reside na alienação temporal e geográfica. Observa-se no grande ecrã meninas e mulheres (e August Epp) rodeadas de feno e charretes, sem luz elétrica - toda esta paisagem passa a ideia de que a história é retratada noutra época que não o ano de 2009.

Da ausência temporária dos homens naquela comunidade, surge a convocatória urgente organizada por aquelas menonitas exaustas e esgotadas de tanta agressão causada por aqueles perpetradores. A reunião tem como objectivo decidir o futuro daquelas mulheres cuja fé em Deus não se perdeu, apenas nos homens. A decisão recai em três hipóteses: 1 - ficar, perdoar e orar; 2 - reagir, lutando; 3 - abandonar a comunidade, partindo juntas. Das três hipóteses, uma seria votada pela maioria para o bem das mulheres e das suas crianças. August Epp (Ben Whishaw) é o único homem presente para tirar notas das reuniões. Também é um menonita excomungado por ser filho de uma mulher também da comunidade, mas inconformada com o sistema machista prevalecente naquele sistema auto-sustentável que vive à parte da sociedade. Apavoradas e atentas ao tempo definido pelos estados do céu, acreditam que têm que decidir o mais rápido possível por causa da presença súbita que poderia surgir dos homens detidos e que poderiam ser libertados a qualquer momento. A medo, vão votando numa das três hipóteses para saírem do conluio agressor que colocou a paz daquelas mulheres em sobressalto. Durante as reuniões vão partilhando os seus traumas e medos.

A fotografia é um sépia azul, quase um preto e branco, para enfatizar um não tempo e um não lugar. A falta de cor também exprime a tristeza que habita aquele espaço. A dinâmica e o ethos do elenco Salome (Claire Foy), Mariche (Jessie Buckley), Ona (Rooney Mara), Mejal (Michelle McLeod), Agata (Judith Ivey), Scarface Janz (Frances McDormand) e August (Ben Whishaw) poderiam ser adaptados para uma peça de teatro, sente-se a imersão e a nudez espiritual de cada uma destas mulheres. É arrebatador escutar o hino "Mais Perto Quero Estar" (Nearer, My God, to Thee), escrito no século XIX por Sarah Flower Adams, cuja temática relata o sonho de Jacó e o pacto de Deus com o patriarca responsável por realizar o sonho do seu povo. Tal como o sonho de Jacó, o grupo de mulheres e crianças também foi ao encontro de um porto seguro numa terra que seria delas e dos seus descendentes.

Os menonitas são cristãos e seguem os ensinamentos do pioneiro e fundador do anabatismo Menno Simons, líder religioso frísio do século XVI. Parte dos menonitas não diferem dos evangélicos e protestantes, algumas denominações são conservadoras e vivem em comunidades isoladas, outras são mais abertas à sociedade. O motivo da divisão da comunidade deve-se a conflitos internos e perseguições, o que motivou que algumas se tornassem ultraconservadoras para proteger práticas e tradições.

A voz destas mulheres representa o conflito interno da luta entre tradição e vontade. Women Talking, escrito por uma mulher, realizado por uma mulher e representado por mulheres, aborda assuntos ainda muito presentes nos dias de hoje, poder e política, violência, consentimento e perdão, fé e rebelião. Infelizmente, continua, ainda hoje, a ser um caminho feito a custo em busca da libertação e justiça.

Texto: Priscilla Fontoura

Reencontrámos Lu Yanan no passado dia 25 de Fevereiro. Desta vez, na Casa Comum, no âmbito do concerto levado a cabo pela antiga solista da...

Reencontrámos Lu Yanan no passado dia 25 de Fevereiro. Desta vez, na Casa Comum, no âmbito do concerto levado a cabo pela antiga solista da Orquestra Filarmónica da China, em Henan, promovido em parceria com o Instituto Confúcio da Universidade do Porto e a Casa Comum (Reitoria) da Universidade do Porto. O concerto de Lu Yanan abriu a janela da Casa Comum para se ouvir a paisagem sonora do extremo Oriente e da música tradicional da sua terra natal, a China. 

Muitas vezes pensa-se o mundo de acordo com a relação que temos com certa realidade. Mas há uma série de diferenças culturais cruciais para uma melhor compreensão do mundo.

Sobre o concerto de Lu Yanan
O concerto de Lu Yanan fez-se com intervalos mediados por um professor, cujo nome escapa-me, para descrever as diferenças da música tradicional chinesa da música ocidental, foi, por isso, sobretudo uma sessão de promoção à literacia musical do extremo oriente. 

Durante o concerto foram dadas explicações sobre as diferenças de como a música chinesa em relação à ocidental deve ser interpretada, destacar quais os instrumentos mais populares e que cuidados precisam, da mesma forma dar a sentir o espírito que habita em cada tema original ou versão tocados por Lu Yanan. A música chinesa em comparação com a europeia contém em si diferenças significativas, uma vez que a sua leitura deve desprender-se da concepção que se tem da música ocidental. Enquanto a música tradicional chinesa é dirigida a um público mais erudito, normalmente no ocidente é a clássica que tem esse enquadramento.
 

Formas e estéticas da música oriental e ocidental
Os tipos de música diferem no sistema tonal, escalas, instrumentos e desenvolvimento histórico. O sistema tonal da música chinesa usa um conjunto de números para representar as notas da escala, enquanto a ocidental suporta-se no solfejo orientado por sílabas para representar as notas da escala. Por outro lado, a música chinesa baseia-se na escala pentatónica, tal como o blues, cinco notas por oitava; enquanto o sistema europeu e ocidental sustentam-se na escala diatónica, sete notas por oitava. A música oriental também emprega glissandos, slides e vibratos para criar melodias expressivas. No que diz respeito à harmonia, a música clássica ocidental é regulada por harmonias complexas e uso de cordas com forma mais abstracta; ao passo que a música tradicional chinesa foca-se em linhas melódicas e harmonias simples. Quanto à estrutura, a música tradicional chinesa usa normalmente a cíclica com melodia e ritmos repetitivos, enquanto a música ocidental clássica orienta-se tipicamente por uma estrutura linear com secções e temas distintos. O estilo performativo da música tradicional chinesa enfatiza a improvisação e ornamentação, enquanto a ocidental segue a partitura. A música tradicional chinesa tem na sua roda de instrumentos o erhu, a pipá e o guzheng, cujos sons e técnicas diferem da europeia como o violino, o piano e o trompete. No geral, os dois estilos desenvolveram-se independentemente com um vocabulário único musical, técnica e estética, contudo, podem obter influência uma da outra - colaborações têm sido levadas a cabo entre músicos orientais e ocidentais para a criação de novos géneros, um desses exemplos pode ser ouvido a partir do lançamento da Antologia da música experimental da China ou a partir do artigo Black Metal Oriental. Apesar de não serem chineses, os Jambinai também podem ser incluídos nesse grupo.

A música tradicional chinesa tem uma longa história que remonta a milhares de anos, com as suas raízes na música tradicional e música de corte. É dirigida para uma elite, como a música clássica europeia que remonta a vários séculos e é marcada por vários estilos e períodos: a clássica, a barroca, romântica e música moderna. A música oriental é mais visual e tende a contar uma história.


Guzheng e Pipá
Lu Yanan dividiu o concerto em duas partes, sendo que a primeira foi tocada ao som do guzheng, considerado um dos mais antigos instrumentos chineses da familia das cítaras, instrumento muito popular no folclore chinês do povo étnico Han. Apresenta uma forma oblonga em que as cordas (entre 21 e 26), presas nas extremidades da caixa de ressonância, passam por um cavalete que determina a altura da nota. Também é conhecido como o piano oriental devido à amplitude de notas, o timbre, e a poderosa expressividade que possui. O tema "Vendendo Flores", um original de Lu Yanan, retrata a história de uma mulher que acorda de manhã para entregar flores numa determinada região. A cítara chinesa não converge nem pertence à mesma família indiana, mas emite a mesma beleza. Muitas vezes a forma como é tocada pode aproximar-se da cítara indiana e reverberar melodias próximas do raga.

Lu Yanan foi afinando a pipá ao longo da segunda parte, por ser um instrumento que desafina com muita facilidade. O primeiro tema "Cisne" emanou pleno encantamento e ilustra dois cisnes enamorados a brincar num lago, enquanto esvoaçam demonstrando contentamento. O segundo tema, um original de Lu Yanan, retrata uma noite passada em Portugal com saudades da sua terra natal. A música chinesa tenta captar sensações espirituais e que se atribuem à natureza. O traço de Lu Yanan é marcadamente calmo, ficando mais intenso e voltando à lentidão inicial.

Pode considerar-se a pipá como o rei dos instrumentos chineses e provém da família do alaúde. O som é mais agressivo em comparação com o guzheng e permite estabelecer paralelos com a expressão musical contemporânea ocidental. As composições dividem-se em dois grandes grupos, peças mais líricas de alusão a observações da natureza e estados de espírito, ou descritivas relacionadas a acontecimentos militares e eventos históricos. A forma de exposição da música remete para a composição ocidental em que a expressão transita para a exploração de sons fora das normas. Os trastes são elevados em relação ao cabo, permitindo menor grau na modelação das notas e mais limitação das notas. Outra peça tocada com ritmo solto e sem acordes regulares pela artista oriental retrata um evento na China no século III A.C. e narra a batalha entre dois exércitos. O rei do batalhão vencido suicida-se junto ao rio a pensar na mulher que deixa, esta alusão lembra parte de um poema de Agustina Bessa-Luís: 

Se eu fosse poeta,
enforcava-me num salgueiro à beira da água,
para ver-me refletido no rio
e sentir na morte companhia.

A escolha de Lu Yanan para esta peça simboliza a separação de um líder que entra numa roda viva de agressividade, cuja representação pode ser aplicada aos tempos actuais na Europa que enfrenta momentos de conflito armado de um líder que age com motivos expansionistas. Muitos dos temas tocados por Lu Yanan poderiam ser acompanhados por imagens projectadas de um dos filmes mais relevantes do cinema moderno chinês, Herói dirigido por Yimou Zhang, pois, além de uma beleza estética e poética singular, retrata tanto cenas de amor como de guerra.

Lu Yanan tem divulgado ao longo de quase duas décadas a tradição musical de uma das civilizações que persiste mais antiga, com mais de 5000 anos de existência. A China integra 56 grupos étnicos que se espalham por um território com mais de 9 milhões de km2, o tempo histórico e a dimensão geográfica deram espaço para o estreitamento ou alargamento da cultura rica em tradições, que contém ligeiras variações ou diferenças dramáticas. A Casa Comum tem vindo a dinamizar iniciativas culturais de entrada livre para trazer literacia cultural à sociedade. Lu Yanan está radicada em Portugal há quase 20 anos e continua a promover a cultura musical do seu país para alargar o horizonte musical das comunidades.



Texto: 
Priscilla Fontoura | Imagens e Vídeos com recurso a telemóvel: Emanuel R. Marques | Concerto: Casa Comum

Os géneros musicais chegam ao desgaste quando explorados em demasia. Deve acontecer com quase todos, quando a repetição começa a prevalecer ...

Os géneros musicais chegam ao desgaste quando explorados em demasia. Deve acontecer com quase todos, quando a repetição começa a prevalecer em detrimento da novidade. E fica difícil superar os pioneiros e todas as bandas que representam esses modelos. No entanto, há sempre uma variável opositora a tudo isto: o vento capaz de alterar a altura das ondas do mar.


Distribuído em seis temas, o álbum dos portugueses Heavy Ocean "H/O", lançado em Agosto de 2021, é um cartão de visita impactante que visualmente poderia ser ilustrado com o mar furioso da Nazaré e uma onda da dimensão de Kanagawa, pintada por Hokusai. O trio composto por Ricardo Vasconcelos, a quem se deve a autoria do design, Tiago "JAYMZ" Oliveira (Lhabya) e Hakän Säs Hipolitür tanto cabe no ambiente heavy-metal mais cerrado como no mais ecléctico.


Heavy Ocean

- Os Heavy Ocean não são recentes nisto de ter bandas, pois não? Como se dá a reunião? Sei que por alguns anos eram um duo e depois juntou-se o baixista num encontro acidental no Stop.

Hakän - Não é a nossa primeira experiência com bandas, mas tirando o Tiago que já tem uns anos disto, para os restantes, Heavy Ocean é o seu primeiro projecto a sair da sala de ensaio de forma mais séria.

O projecto nasceu em 2016 quando o Tiago propôs a ideia ao Ricardo de comporem algo diferente do que até então tinham feito em outras bandas. Inicialmente a ideia seria serem apenas os dois, só guitarra e bateria, mas à medida que iam compondo, foram sentindo falta de algo mais para complementar. Paralelamente a isto, eu ensaiava perto da primeira sala de ensaio de Heavy Ocean e gostava de ficar por perto a ouvir o som que “fugia” das paredes. Quando soube que o Tiago (que já conhecia de outras guerras) era um dos membros do projecto, e que ainda não tinham baixista, propus-me a uma audição. Foi já com os três que surgiu o nome Heavy Ocean.

 

- Lembro-me do Tiago, mas não na bateria. Olá Tiago, já não nos falamos há muito e, já agora, parabéns, noto que colocas um dedo criativo na bateria, por exemplo, a “Pale Horse” tem detalhes interessantes, e não a utilizas apenas como instrumento de acompanhamento. Davas voz aos Lhabya nos idos anos 2000, e sei que tiveste um problema nas cordas vocais, o que acabou por fragilizar a tua continuidade na banda. Já tocavas bateria desde aí ou foi um instrumento que foste tendo interesse mais tarde?

Tiago - Olá Priscilla! Antes de mais obrigado pela entrevista e pelas palavras. É verdade, já nos conhecemos há tantos anos e voltamos a encontrar-nos novamente graças à primeira arte. A bateria foi a primeira paixão, desde que tinha malta da terrinha com bandas de baile que ficava vidrado a olhar para aquele "monstro" e cheio de vontade de lhe dar porrada. Até que um dia o guitarrista dessa mesma banda me deu essa oportunidade na sala de ensaio deles e, assim que me sentei, fiquei agarrado de tal forma, que a hora que lá estive passou em 8 segundos, como acontece agora nos concertos. Ahahah! Pode-se dizer que foi amor à primeira pancada. Curiosamente tenho uma composição escrita por mim em '91, antes desse episódio, em que me pediram para dizer o que queria ser quando fosse grande, na qual afirmei, com toda a convicção de um puto de 9 anos, que queria ser músico e que o instrumento que queria tocar era a bateria. Pois bem, passados 33 anos, esse sentimento está bem vivo e neste momento já não dá para suportar as agruras da vida adulta sem música, tocada, ouvida e principalmente sentida. E, na realidade, ainda sou esse puto, que toca com o coração na boca, com a intensidade que sente a música, e se calhar isso é que te fez perceber que sim, a bateria em Heavy Ocean nunca será só acompanhamento, mas sim uma terceira "voz", que se tiver que sair da forma tradicional de seguir o baixo sai, se for isso que a música pede. Porque no final, se lhe fizermos a vontade, ela indica-nos o caminho e depois é, como referi, seguir o coração, pois existe um motivo para ele ser o nosso único orgão ritmado e percurssivo. 

 

Assisto a algumas bandas que foram bastante enérgicas nessa altura e, por força de várias razões, descontinuaram essa actividade. Mas agora sentem uma tremenda vontade em reaparecer. Qual a razão que apontam?

Tiago - Penso que na altura era muito mais amor à camisola, um sentimento de paixão genuína pela arte, sempre numa tentativa de imitar os nosso ídolos, mas tudo de uma forma muito rudimentar. Recordo que era a altura ainda muito inicial da internet, não havia todas estes meios de comunicação na net, não havia redes sociais, ou pelo menos nos moldes actuais, em que num segundo conseguimos falar com um músico ou produtor do outro lado do mundo. Era muito mais ir a concertos, conhecer a malta, como te conheci a ti, quando foste tocar aqui perto da minha terra, e depois tentar tocar juntos, onde nos deixassem, muitas vezes quase a pagar para tocar. Hoje em dia as bandas começam logo com condições para chegar rapidamente a um ponto que a nós levava anos. Basta comparares as nossas gravações em K7, ou quem tinha mais posses em Mini Disk, onde ouvíamos mais tudo o resto que a música propriamente dita. Hoje, um computador mais uma placa de som e fazes um álbum inteiro sozinho, no quarto. E se calhar, essa facilidade está a atrair a malta antiga para a música outra vez. Espero que estejas incluída nessa malta e a pensar na reunião daquela tua banda incrível que eu tanto gostava e que nos levou a conhecer-nos e a manter esta amizade até aos dias de hoje.


Tiago "JAYMZ" Oliveira

Gostamos da liberdade de interpretação que não ter voz dá às nossas músicas e até mesmo liberdade artística. Começa a acontecer várias vezes vermos as pessoas a vocalizar as nossas músicas durante os concertos, tem sido um efeito secundário interessante e com o qual não contávamos.


- Parece-me que, apesar de não serem mais uns miúdos, há uma certa ingenuidade que perdura. O que pretendem com esta reunião a três? Ainda acreditam que é possível em Portugal, para quem já andou nestas lides, sabe perfeitamente que é um percurso ingrato... 

Hakän - A música em todas as suas formas sempre foi algo importante na nossa vida, de uma forma ou outra, com mais ou menos força, sempre fomos alimentando este desejo de, acima de tudo, fazer música. O percurso é ingrato e difícil, mas o prazer de pisar um palco e ver as pessoas a dançarem e a sentirem música feita por ti, é um sentimento arrebatador e que dá ânimo para continuar a lutar.


 

- Embora não estejam presentes cordas vocais em H/O, não sinto que haja necessidade. Mas não têm medo de cair no cliché do género, uma vez que o post-rock e o post metal pendem, em grande parte, para o instrumental?

Hakän - Não temos esse medo, até porque existem muitas bandas do género que optam por ter voz. Gostamos da liberdade de interpretação que não ter voz dá às nossas músicas e até mesmo liberdade artística. Começa a acontecer várias vezes vermos as pessoas a vocalizar as nossas músicas durante os concertos, tem sido um “efeito secundário” interessante e com o qual não contávamos.

 

- Como foi desenhado o conceito para este trabalho e como se deu o processo de composição?

Hakän - Actualmente o processo de composição parte, na sua grande maioria, de ideias que o Ricardo nos traz e depois vamos trabalhando os três. No álbum, exceptuando a Numb que já foi composta com a formação completa, este processo foi feito entre o Tiago e o Ricardo. Quando se juntou o baixo foi preciso encontrar espaço para este fazer sentido de forma orgânica em músicas que foram pensadas para apenas dois instrumentos.


Ricardo Vasconcelos

Sim, há muito que voltámos as costas ao mar, mais facilmente procuramos atenção, apoio e validação da Europa, do que arriscamos ser grandes atirando-nos para um mar desconhecido. Apesar desta realidade, cremos haver uma nova geração pronta a arriscar, inovar mas tendo em conta a nossa cultura e portugalidade.


- Como tem sido a resposta ao vosso trabalho?

Hakän - A aceitação do álbum tem sido bastante positiva, principalmente no Spotify, onde temos números bastante interessantes para uma banda da nossa dimensão. Em termos domésticos o feedback também é muito positivo, felizmente quem decide dar uns minutos do seu tempo para nos ouvir acaba por dar o tempo por bem gasto.

 

- Eu vejo o álbum como uma representação das fases do mar. O tema introdutório: a maré que se vai enchendo, os quatro temas: o mar turbulento acompanhado de ventos fortes e “Solace” a maré baixa. Portugal tem uma forte ligação ao mar, mas cada vez mais parece que lhe vira costas para centrar-se nas tendências europeias. Wim Wenders, em entrevista à Antena 1, declara, em 2019, no âmbito da relação que tem com Lisboa: “Lisboa era uma cidade tão diferente, julgo que captámos o último vislumbre de uma cidade que, entretanto, desapareceu. Foi uma sorte ter feito o filme em ’94, e não em ‘96, ou ‘97, porque acho que já não apanhávamos esse vislumbre - o vislumbre de uma cidade antiga que começa a contactar com a modernidade do séc. XX. Agora, a cidade está claramente no séc. XXI, aberta à Europa e de diferentes maneiras, é semelhante a outras cidades do continente, mas na altura não era assim.”. Acrescenta que “a Lisboa que encontrávamos em ‘94 foi a cidade que viveu a Revolução, que ainda guardava traços colonialistas dentro de si, ainda vivia separada do resto da Europa, por esse grande país chamado Espanha, e Lisboa, sentia eu de uma forma muito marcada na altura, era uma cidade que se derramava para o mar, estava virada para o mar, mais do que para as fronteiras terrestres. E agora, quando regresso, sinto o contrário, é uma cidade que contempla a Europa, é como se tivesse virado as costas ao mar, essa mudança aconteceu, entretanto, e é algo de muito significativo, uma cidade virar-se para o outro lado.”. A cidade aqui, pode representar o país. Concordam com a opinião do realizador?

Hakän - Sim, há muito que voltámos as costas ao mar, mais facilmente procuramos atenção, apoio e validação da Europa, do que arriscamos ser grandes atirando-nos para um mar desconhecido. Apesar desta realidade, cremos haver uma nova geração pronta a arriscar, inovar mas tendo em conta a nossa cultura e portugalidade.

 

- Se falarmos de mar furioso, Nazaré surge de imediato. Nunca pensaram filmar um vídeo que possa ilustrar o vosso som? E por que não vídeos para acompanharem os vossos concertos?

Hakän - Actualmente temos um videoclip para a Numb e um visualizer para a Ten Ton Heart, temos ideias para mais vídeos, mas a dimensão das músicas e a nossa exigência guiam-nos para um tipo de trabalho que até ao momento não pudemos fazer (é preciso priorizar os investimentos). O aspecto visual e cénico nos concertos também é algo em que estamos a trabalhar, mas temos de ser práticos, agora a prioridade passa por dar a conhecer Heavy Ocean ao maior número de pessoas possíveis, para que nos queiram ver ao vivo.

 

- Como olham para o cenário de bandas do tipo em Portugal? Vêem união? 

Hakän - Temos tentado encontrar bandas do género para tocarmos juntos, e já temos alguns nomes apontados. No final do ano passado tivemos um experiência muito bonita com os Icosandria, em que nos juntámos para um evento intimista promovido pela duas bandas e que resultou muito bem.


Hakän Säs Hipolitür


- Sei que tu, Hakän, estás envolvido em "conservar" alguns nomes associados ao Stop, uma vez que o seu legado tem sido negligenciado. Como tem sido a resposta das bandas quando pedes para participarem nesse levantamento? E como os Heavy Ocean, uma vez que lá ensaiam, olham para o futuro do Stop?

Hakän - Sim, tenho andando, na medida que o meu tempo me permite, a recolher testemunhos de pessoas que vivem ou viveram o C.C.Stop, não só músicos. A resposta das pessoas é sempre positiva, se bem que a proactividade já é mais reduzida, em grande parte motivada por anos e anos de total ausência de resultados. Enquanto banda, olhamos para esta situação com muitas reservas, o Stop é muito importante para nós e para a comunidade aqui ali se formou, esperamos que tudo se resolva da melhor forma e que possamos continuar a fazer música lá.

 

- Não acham que está a faltar aos H/O mais visibilidade noutros circuitos aqui deste país?

Hakän - Claro que sim, é a parte mais frustrante disto tudo, temos sempre um bom feedback sobre o nosso trabalho, mas é difícil chegar aos “sítios”. É claro que em grande medida a culpa é nossa, uma vez que a “vida de adulto” nos condiciona muito o tempo para dedicar a contactos e divulgação.

 

- O que têm planeado para o futuro?

Hakän - O plano é simples, divulgar a banda, dar concertos e compor novas músicas. 


Entrevista: Priscilla Fontoura
Imagens: 
H/O

Créditos das Imagens: Seven Concept Media
Esta entrevista não foi escrita ao abrigo do novo acordo ortográfico.